Ao Redor
Curadoria e texto de Raquel de Sá
notas sobre a paisagem e seus limiares
Com que frequência enxergamos os artifícios implicados em cada re-apresentação da natureza? Que lemos na paisagem aquilo que ela contém de imaginativo, como prisma de observação das coisas? Ou ainda, enquanto forma de acomodação do desejo, travestindo em realidade necessidades ou fantasias, enquanto manifestações “naturais” ou desinteressadas?
Como os mapas nos atestam, a representação da realidade é sempre internamente estruturada por uma outra geografia, de ordem imaginária. Quando muito familiarizados com seus códigos, paramos de enxergar seus contornos, naturalizamos seus limites, e justificamos suas abstrações em nossos gestos – em especial, quando a pensamos intrínsecas à nós. Mesmo quando não conhecemos as linhas gráficas que delimitam os territórios, elas operam dentro do nosso imaginário como divisões afirmativas: informam em nós os limites da paisagem que simultaneamente habitamos e imaginamos – ou ainda: que habitamos de determinada forma, por tê-la imaginado de determinada maneira, nos acostumando a assim sonhá-la.
A estrutura residiria justamente onde não pensamos a respeito. Logo, interessa apontar no trabalho de Sofia Lotti uma discreta contradição que suas imagens criam entre ausência de linhas assertivas, no contorno dos elementos compositivos, e a presença de limiares, possíveis a partir de avizinhamentos de espaços de cor. De modo que não olhamos tanto para as coisas “como elas são”, mas para o limiar delas, porque olhamos entre elas, pelas fronteiras. Isso nos impede de criar uma unidade no interior de cada elemento, já que sua percepção se dá pela interação das cores com seu entorno – os elementos se definem pelos seus limiares que, por causa da cor, são simultaneamente internos e externos à cada um deles.
Assim, quando a linha do tecido, ou as áreas de cor do pastel, apagam um contorno inicial das figuras ao se depositarem no suporte, fazem o céu e a terra se tocarem diretamente, mutuamente. Os elementos, mesmo expondo sua materialidade, não são literais, mas enigmáticos em sua identidade compartilhada. Tudo isso complica a tensão histórica, já muito desgastada, entre figuração e abstração. Como sugestão, talvez pudéssemos pensar a partir de termos como abstração e imaginação, artifício e linguagem que, mais do que oposições, poderiam funcionar como definições coextensivas, que ampliariam o sentido de um mesmo comportamento: o de utilizar técnicas para elaborar um pensamento sobre a natureza, que é tanto produto quanto produtor dela.
Para isso, Sofia habita simultaneamente três técnicas (pastel, têmpera e tapeçaria) como momentos de uma mesma prática: a tapeçaria a permite sintetizar elementos da paisagem, semelhantemente como fazem as sombras, complicando assim a simplificação dos papéis assumidos por práticas historicamente ligadas às artes decorativas. Já os pastéis a fazem trabalhar paralela ao chão, definindo suas áreas de cor respeitando a lei da gravidade. Ao repousar na pintura à têmpera, as visões recolhidas pelas outras técnicas retornam, realizando desvios experientes para construir manchas-árvores, manchas-pedras, manchas-montanhas.
Posto que para isso é necessário manter o olhar desfamiliarizado com o entorno – seja pela novidade da paisagem, seja pela troca que se estabelece entre as técnicas –, Sofia formula caminhos para manter-se emotivamente disponível diante da natureza. Eis que surge uma relação empática que impulsiona a força de trabalho, e que curiosamente reaparece, ao longo dos relatos das artes da costura, como uma forma de reação, provocada por uma alteridade importante para aquele que tece. Esta força, que é intuitiva e sensória, também parece ser parente daquela que permeou certa compreensão de espiritualidade diante da experiência estética com a natureza, notas sobre a paisagem e seus limiares noutras praticantes da abstração: Hilma Af Klint, Georgia O’Keeffe, Etel Adnan… Logo, mais desafiador que abolir o artifício – ensejando uma imagem que não seja mera imitação da natureza mas a natureza em si, tal como algumas abstrações históricas buscaram –, seria conviver com esta instância eticamente, indagando não como o estrutural determinaria o particular, mas como o particular reagiria ao que é estrutural: sendo a abstração necessária a qualquer ato de definição da realidade, poderíamos construir outras maneiras de estar no mundo? Maneiras mais justas e mais equilibradas de acessá-lo, bem como mais abertas? Que nos levariam a preservar a vida em sua diversidade?
Valeria dizer que seria tal capacidade de re-imaginar nossos atuais quadros de referência, abrindo-nos para uma realidade sonhada (diferente mas relacionada à atual), uma das grandes aflições do pensamento ideológico, posto que re-imaginar a vida nos reconcilia com o pensamento utópico. De modo que, ao partir de uma experiência física com a paisagem, Sofia o faz justamente como partida: a fotografia que ela tira do entorno não atua como uma estrutura rígida na imagem que se vai construir, mas como um referente inicial ao qual ela deliberadamente se distancia, estabelecendo uma relação improvável com sua origem. Ao tornar menos didática e mais indefinidas as identidades que poderíamos traçar entre sua paisagem e a nossa experiência, a abstração em Sofia tende a conquistar um espaço imaginativo para pensarmos a natureza de outra forma. Qual forma? A obra não resolve. Somos provocados a realizar este trajeto de volta ao sensível auscultando nossa própria capacidade – particular e ao mesmo tempo coletiva – de re-imaginar o entorno.
raquel de sá abril de 2022